domingo, 3 de outubro de 2010

O amor que nos é possível
Eu costumava dizer e pensar no amor romântico como uma fonte já morta para mim. Mas eu havia aprendido nessa encarnação a ver se não com olhos muito superficiais e a minha superfície, nesta ocasião, nada mais era do que a dor do orgulho muitas vezes contrariado. Pensava que o amor era compartimentado, classificável em meus próprios limites. Hoje, ainda, na insipiência do meu ver, as primeiras letras deste aprendizado me permitem perceber que o amor é uma energia só: ama-se o próximo, aos pais, aos filhos, irmãos. O amor é aprendizado, e, como aprendizado, é um desafio, uma música da qual os nossos ouvidos de alma imperfeita só conseguem perceber os primeiros acordes pelos instintos da carne: assim amamos estes perfeitos desconhecidos que são nossos filhos, às vezes nossos irmãos e com tão pouca compreensão aos nossos pais; “porque são a nossa carne, o nosso sangue, o nosso instinto”. Em tantas outras oportunidades na vida nem isso conseguimos: esquecemos os nossos filhos, abandonamos os nossos pais, irmãos, atravessamos a rua ao encontrarmos um irmão em necessidade, nos ressentimos de tudo, de qualquer contrariedade. Neste mesmo sentido, nos apaixonamos e, pensamos, “amamos perdidamente”, porque nosso corpo, nosso instinto, e até mesmo a nossa carência, reclama a necessidade desse outro ser. É que o amor, essa energia tão maior, mesmo em suas mais primitivas manifestações, é poderoso, maravilhoso de se sentir e nós, espiritualmente tão crianças, cegos, ignorantes, queremos receber esse alimento, sem atingir a alegria da troca, e, em um plano mais avançado, da doação. Sinto, neste frio início de primavera, aqui, na minha solitude, que a beleza, o dinheiro, a busca pelo poder, pelo dinheiro, pelo companheiro, pela sensualidade, são buscas - muitas vezes dolorosas - pelo amor, o que de menos conhecemos neste planeta. Queremos ser admirados, enfim amados. No fim, bem lá no fundo, tudo o que queremos, é o amor.
E, voltando ao amor romântico, aquele grandioso, de nossas fantasias, como vivê-lo se não perseguindo a generosidade com todas as criaturas? Outro dia eu li que o nosso querido, e muito amado de Deus, Chico Xavier, em resposta a um pedido de ajuda a uma mulher em crise conjugal, respondeu: trate seu marido como a um filho. Eu, uma mulher “psico-analisada” logo de te pronto rejeitei a história, pensando como, numa relação de homem e mulher, poderia caber a mãe, então não foi contra isso que nos insurgimos nós, mulheres, de sermos reduzidas ao papel de mãe, pensei? Ah, ouvidos imperfeitos de humanos imperfeitos ... insensato coração... Sempre interpretamos com alguma defasagem a linguagem de nossos irmãos espirituais. Sofri mais um bocadinho, senti solidão, insatisfação, padeci fisicamente de energias acumuladas, para perceber que o que nos falava a espiritualidade é do amor, o amor incondicional, do estabelecimento de uma compreensão maior que não tenta moldar quem quer que seja aos nossos quereres e limitados saberes, que concede espaço ao outro para o crescimento, para o seu próprio aprendizado. A todos os irmãos, homens e mulheres, que em tantas fases de nossas vidas, sentem-se sós: amem, vamos aprender a amar, amem seus pais, irmãos, e a todos que o nosso estágio evolutivo de alma permitir, vamos nos preparar e nos adornarmos de muito amor e, de certeza não haverá solidão e muito menos insatisfação. Deixemos o medo um tantinho de lado, porque cada uma dessas experiências, mesmo nas ingratidões e nas amarguras, nos permitem uma resposta mais aproximada da verdade ao “quem sou eu?” Eu, de minha vez, decidi fazer as pazes com o amor, vejo em mim uma alma de quem gosto e que merece evoluir: quero, agora, voltar à escola do amor, sem negar-lhe, em nenhum aspecto, porque desconheço outra possibilidade ou outra oportunidade que não seja esta de evoluir e, quem sabe, nesta longa caminhada que há, para todos nós espíritos, de, um dia, não só ter, mas ser esta vital e ainda inexplorada energia: o tal do amor.

domingo, 21 de março de 2010

Emergente

Pensei em falar nada, nada não
Ligar para minha mãe,
dizer um carinho à minha irmã ou a um amigo,
Comentar um filme, uma besteirinha qualquer,
Nada não...
Sou a mulher depois das lidas da casa, que não quer que lhe peçam nem um copo de água, que lhe sujem a pia já maculada,
que abençoa o silêncio só seu, depois que todos se foram, até a próxima refeição,
De mim não sai nada agora sem tirar pedaço, sem doer,
Um desfalque...
o silêncio parece exigir minha alma, até mesmo os mesmos afetos,
lembrei de todos, mas nada, nada de ter com eles,
lembrei deles, de todos eles, mas nada de ontem, de amanhã...
Este é um silêncio de agora, um dia domingo de sol indeciso, eu sozinha de pijamas,
Abujamra falando do Henfil, filha adolescentemente dormindo prá mais de meio-dia,
Não é vazio, é só meio-dia de domingo, é absoluto, é condição.
Um quando de aqui e agora,
É prá ser.
E De repente eu percebi, muito muda, que eu existo demais,
Se eu sei? Não sei,
Sinto,
Silêncio....
Emergente, eu.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Querido primo,
Passeando pela Ilha com você e com as nossas meninas, conversamos sobre como, nas obrigações diárias, deixamos uma parte de nós mesmos, ou quase todo, em algum canto. “Como se estivéssemos partidos em dois, quase uma vida dupla”, concordamos. É o sistema, o capital, a família, a igreja, enfim, nós mesmos, eu pensei.
Como sempre, calou fundo, primo.
Fiquei esses dias todos me perguntando aonde é que eu fico quando eu vou trabalhar? O que de mim não tem permissão para entrar no trabalho, no supermercado? E essa pessoa que coloca comida na mesa, em que medida ela se mete na educação dos meus filhos, nas conversas com os meus amigos, nos amores que escolhi viver, ou me proíbe de sair com os amigos, de dançar, de rir alto quando sentir vontade? Será que foi ela que me obrigou a fazer regime?
A vida ensina, dizem muitos. Mas ela, a vida, também adestra, replico eu. Adestra, acua as nossas vontades pelo chicote ou nos recompensa com pequenas ou grandes porções de ração que nos fazem pular, rolar, sentar, deitar, ou qualquer coisa que nos garanta sobrevivência ou conforto.
Mas adestrar não significa concordar, muito menos aprender em seu significado mais precioso: o que nos faz ser alguém melhor, alguém que cresceu. Da mesma forma que sobreviver não é viver, que ter medo não é ter cuidado.
Sobrevém, então, um querer inconformado, uma ruga na testa, uma dor de cabeça, joelhos que rangem, uma amargura traduzida de azia, um horário que a gente não consegue cumprir, uma pequena infidelidade, uma vontade de ir embora, não se sabe nem de onde.
E esse querer às vezes vive tanto no escuro que já não se reconhece mais, confunde as nossas escolhas, pode radicalizar na forma de prazer imediato, ou definha e mata tudo mais ao seu redor.
Mas fiquei pensando, primo, em fazer um acordo. Não dá mesmo para escolher entre mim e mim. Um rompimento não seria bom agora. Já casei e descasei, isso é muito cansativo e caro. E, veja, a que vai trabalhar é uma boa pessoa, põe comida na mesa, paga a escola dos filhos, me dá casa limpa e roupa lavada, etc., não dá para reclamar. E a outra também não quer ser mais “a outra”, ela quer viver sob o sol.
Vou ter que ficar com as duas. Ser as duas.
Mas e a outra? Aos quarenta anos deu, mesmo, para reclamar presença, como naquele dia de verão que passeávamos juntos.
E você provocou, primo, deu razão para ela, em parte a culpa foi toda sua, preciso lhe dizer.
Notei que ela gosta de caminhar, tomar sorvete, de rezar, de ver e sentir o mar, de comer chocolate, ama, ainda, as crianças, pintar, escrever e falar muitas bobagens, cumprimentar desconhecidos na rua e sorrir, rir alto, bordar e dançar.
Enfim, resolvi dar mais atenção a ela, é a única saída.
Outro dia levei a que não trabalha para desfilar no carnaval aqui na Ilha. Só posso te dizer que naquele momento eu fui mais espírito do que corpo - só pode ser isso mesmo porque já tem dois dias que só consigo andar de cócoras para não sentir dor. Eu virei uma criança de seis anos daquelas que nem querendo, e nem apanhando, conseguem parar de pular. Era como se eu tivesse voltado para mim, primo – e antes que você me pergunte, você sabe que eu não bebo.
Mas a que trabalha apareceu por breves minutos quando o carnavalesco começou a gritar: “carnaval é beleza e sofrimento, beleza e sofrimento, minha filha”. Ela é um pouco mais racional, você sabe.
Beleza e sofrimento, beleza e sofrimento; uma não é causa nem efeito da outra: elas apenas existem. Beleza e sofrimento.
Hoje à tarde eu trabalhei sem interrupções, sem grandes bloqueios. Beleza e sofrimento. A minha escola foi campeã, soube agora: Telefonei para os amigos, gritei de alegria por mim e por aquela gente tão simples, tão dedicada e tão linda. Beleza e sofrimento. Escrevo para você agora. Beleza e sofrimento. O ano começa mesmo só depois do carnaval. Beleza e sofrimento. Vou participar do desfile das campeãs na terça, mas na quarta-feira eu levanto cedo para trabalhar. Beleza e sofrimento.
Acho que ficaremos bem, primo.