domingo, 23 de agosto de 2009

“O DIA QUE VOCÊ NÃO FOI EMBORA”

Você chegou e eu ouvi da sua boca esperança. Será que eu ouvi isso mesmo da sua boca? Não sei, naquela época o meu coração cansado falava muito alto e me fazia muito medo...
Você seria quem tomaria conta de mim, quem me compensaria toda a dor passada e eliminaria toda a possibilidade de dor futura. O meu companheiro, o meu amor. E tudo que não se encaixava nisso eu não via, nem ouvia, e, se alguém me dissesse, eu tomaria como ofensa.
Nieztche, nas suas agonias filosofadas, conta a história de uma rua que se chamava “instante”, que dava para dois caminhos chamados de “eternidade”. Eu estive nesta rua e fui de encontro às duas avenidas que, se não se chamavam eternidade passaram muito perto, porque eu, como Zaratrusta, no fim de tudo, fugi “para o mar”.
Você deve lembrar, quando nos conhecemos o meu apartamento estava indo para leilão, o meu ex-marido e pai dos meus filhos era um tormento em vida, o meu trabalho me remunerava muito mal, eu estava cada vez mais improdutiva e as contas se acumulavam, em pilhas e pilhas de vida mal conduzida. A minha única alegria era os meus filhos, meus companheirinhos queridos, cujas adolescências já nos espiavam pelo vão da porta do tempo e eu nem via, ou também pretendia não vê-lo. Mas os “eu me amo” e os “eu me aprovo”, lidos num livro de auto-ajuda qualquer, acobertavam o verdadeiro mantra que o meu coração mandava para o céu, todos os dias: esperança, esperança, qualquer coisa, socorro!
Como costuma dizer um grande amigo, os dias de outono aqui na Ilha costumam ser lindos, como uma “mulher madura, no auge da sua beleza”. Para completar, a noite era estrelada, perfumada e me pareceu muito justo que a angústia e o medo pairassem suspensos, como de outra vida, de outra dimensão, de outra pessoa, de outro mundo, que só o início do dia seguinte poderia despertar. Naquela noite, então, eu me vesti de vermelho, esquecimento e leveza, para jantar com amigas e para encontrar você: como um amigo de uma amiga. Lembro que, antes de entrarmos no restaurante, eu vi uma família caminhando mais à frente de onde estávamos, pareciam tão felizes que eu quase que queria me aproximar, beber daquela energia, viver essa vida um pouco, mesmo emprestada, fingir que era meu o que eu nunca consegui ter ou construir: uma família de papai, mamãe e filhinhos, todos se amando, sem gritos, conflitos e lágrimas. A amiga que me acompanhava chegou a perguntar baixinho: será que são reais, será que são felizes, têm problemas? “Será que teremos isso um dia?”, nos perguntávamos. Bebemos muito vinho e você, o amigo da amiga, anunciou que estava se separando. A razão pairava mais longe ainda, o entorpecimento me dominava. Eu poderia ter ouvido a história toda, prestado mais atenção no que você realmente dizia, mas eu só conseguia pensar que eu me sentia muito atraída por você, pelo desejo que você sentia por mim, e pela palavra “separando”. Hoje eu sei que a minha grande questão de vida, material e espiritual, é “prestar atenção”. Agora consigo perceber que “separando” não é igual a “separado” ou mesmo “divorciado”, mas foi assim que eu entendi. Assim como os meus problemas, que eu sentia flutuarem acima de mim, eu sentia palavras distantes, frases soltas do tipo “venda da casa”, “ainda moro lá”, “agora vou ter coragem”, “não consegui me separar antes”, “falta de carinho”, “tinha uma amante”, “já traí muito”, “a culpa é toda dela”, mas nenhuma delas me prendia, nenhum senso crítico me chamava para conversar: eu só pensava em suas mãos, que vez por outra esbarravam em mim, os elogios, os olhares, em como a sua voz parecia firme, alguma segurança aqui e ali: mais nada. Hoje, tantos anos depois, eu percebo, claramente, que naquele desespero todo, o que eu achava que me estava sendo dado, eu, na verdade, havia me permitido: prazer, afetividade. E o que parecia ter acontecido “de repente”, eu busquei intensamente.
O nosso primeiro encontro sozinhos aconteceu poucos dias depois, e, como uma adolescente inconseqüente, eu comprei - sem ter, realmente, dinheiro - roupa, acessórios, lingerie, sapato, perfume, tudo novo: eu precisava de tudo novo, porque a sujeira, que eu empurrava para baixo do tapete, eu queria mais era jogar fora junto com o próprio tapete, inclusive.
Mas, se você chegava a ser o “homem-semáforo”, de tantos sinais que me dava, eu estava daltônica.
Finalmente chegou o “grande dia” e você chegou anunciando que já havia jantado; a metáfora era ululante: a sua vida já estava pronta, inacessível para mim, e eu poderia ser para você, quando muito, o cafezinho depois do jantar.
Você me ajudou a embalar as minhas coisas, a me mudar, a aprovar o apartamento que eu aluguei (a minha eterna mania de precisar de aprovação), instalou chuveiros, massageava meus pés, me elogiava, me fazia sorrir e quase não me deixou espaço para chorar a perda da minha casa. Será que já lhe agradeci por isso? Imagino que sim, de muitas e insondáveis maneiras.
No entanto, os meus filhos se mostravam cada vez assustados, confusos e com muita raiva. Perdemos o apartamento e distanciaram-se dos amiguinhos. A mãe, que até então era a sua referência de confiança, a sua companhia exclusiva, havia admitido um estranho em sua nova casa. Um verdadeiro invasor, que vinha a qualquer hora do dia, sem avisar, mudava móveis de lugar, alterava os nossos horários e criticava os nossos hábitos.
Infelizmente eu tenho que lhe dizer que entre o meu casamento e você a diferença foi apenas o meu par romântico, o argumento é o mesmo.
No primeiro caso, eu queria sair de um lar conturbado e de muito pouca liberdade. No outro, eu queria fugir da luta pela sobrevivência, da dor de perder a minha casa, pela qual eu tanto tinha lutado. Em ambas as histórias a idéia comum foi apenas uma: eu já não acreditava mais em mim.
Ao abrir a porta para o pai dos meus filhos e, alguns anos depois, para você, eu fechei essa mesma porta para mim: não haveria mais de experimentar a minha própria força, não haveria desafios e tampouco conquistas.
Eu não compreendia que a segurança, que eu tanto queria de você, excluía a minha coragem.
À medida que compreendo esse processo, eu vejo outras mulheres, amigas, irmãs, colegas de trabalho, tantas mulheres em mesmo enredo de auto-sabotagem, de negação profunda e enraizada do próprio poder.
Eu vi isto claramente em uma reunião no colégio minhas filhas com um professor: as críticas às notas foram ouvidas com um conformado silêncio, mas os elogios receberam um embaraçado e vitoriano protesto de uma das minhas meninas.
Como você vê, a herança que eu recebi, eu multipliquei e tratei de transmitir.
Não tem sido fácil dizer a mim e às minhas filhas que as nossas vidas são tarefas nossas, que sabemos muito, que podemos saber e que, de fato, podemos fazer muito e que não há nada de verdadeiro e de muito definitivo, além disso.
Mas veja que quando você seguiu a sua vida, na realidade você não foi embora de mim, porque eu fiquei, esses anos todos, lamentando e contando as suas mentiras e, é claro que deixei de mencionar as minhas próprias mentiras, as quais agora, eu mesma, estou contando para você.
Eu até quis lhe dizer que eu estou mais bonita e mais magra, mas os anos me desmentiriam. Também pensei em lhe dizer que fiquei muito rica, mas estamos em uma crise mundial, você sabe, não ficaria nem bem.
O que é fato, mesmo, é que você vai me encontrar com um novo amor.
Isso não faz muito tempo, porque, como eu já lhe disse, quando você foi embora, você ficou comigo, em forma de dor e mágoa, muito sentidas, durante muito tempo.
Na verdade se trata de um amor de infância, um antigo amor. Alguém, de quem eu tinha saudades, mas já quase esquecia. Alguém que me prioriza e quer somente o meu mais alto bem.
Este novo amor sabe como ninguém cuidar dos meus interesses, ou, pelo menos, está se esforçando.
Eu tenho sido presenteada com valorosas pequenas atenções: café na cama, filmes românticos , um passeio no parque, uma saída ocasional com amigos, cortes de cabelo, um banho mais caprichado ou, ainda, uma roupinha nova muito de vez em quando.
Esse amor é imperfeito, eu vejo claramente, mas é verdadeiro e tem me dado muita paz.
Provavelmente você não vai me entender, como muitos ainda não me entenderam.
Mas, dessa vez, perdoem todos, eu resolvi abrir a porta para mim, somente para mim.
Então, agora você pode ir embora. Todas as suas lembranças e vestígios já estão de saída.
Eu agora estou bem.
Em tempo: se na saída você encontrar o meu ex-marido, pode transmitir as boas notícias a ele.

domingo, 16 de agosto de 2009

A lista: mais uma da mulher real contra a ideal

Dessa vez eu me organizo, não há dúvida. Basta fazer uma lista, eu já li muito sobre isso. Ah! E é claro, cumpri-la. Mas eu não preciso me preocupar com isso, nem pensar em nada: é só cumprir a lista para ser feliz. O despertador (faz parte do meu novo eu) tocou depois de me ameaçar a noite inteira com aquele barulhinho dos ponteiros. Acho, agora, que o segredo das pessoas pontuais é esse: nem dormem. Também esteja aí também a razão dos pontuais serem chatos: não dormem. Depois dessas descobertas incríveis, eu resolvo levantar assim mesmo. Tinha decidido, também, meditar antes das crianças acordarem. Após algumas tentativas percebo que, como estou com sono e um pouco irritada - como todo o ser pontual - preciso meditar sobre algum assunto que me agrade, só para facilitar o processo. Decido meditar sobre a roupa que eu vou vestir para trabalhar. Eu meditei tão bem, que eu comecei a imaginar que tinha dinheiro para uma cirurgia de pálpebra e me imaginei linda. Foi ótimo, até a minha filha pré-adolescente gritar que estava atrasada para se arrumar, que todos estavam contra ela e que queríamos que ela fosse feia para aula. Como hoje eu meditei, calmamente respondo – mas não muito, por causa do barulhinho do despertador – que se ela fosse para a aula com a cara rebocada iria apanhar. O mais novo choraminga um pouco, mas tudo bem: eu vou calma e organizadamente preparar o café. Sobre o café da manhã, eu não quero falar e pouco me recordo, eu apenas sei que só não fui trabalhar de chinelo porque o tirei do pé no elevador para ameaçar o filho do meio que se lembrou da mochila com o material do colégio quando quase chegávamos ao térreo. Pausa filosófica: porque os filhos nunca vão escovar os dentes quando mandamos? Quanto, exatamente, é, em minutos, em horas, o “já vou”?. A minha experiência diz que o “já vou” pode até durar dias. Hora do almoço: decido que vamos todos almoçar no restaurante a quilo para dar tempo para fazer tudo o que eu tenho para fazer. Ainda não cumpri item algum da minha lista, mas tudo bem, eu estou muito positiva. Não contava com a fila enorme no Buffet e com tão pouco tempo até o ônibus escolar apanhar as minhas crianças para as outras atividades. Olho para baixo tentando me acalmar e dou de cara com um pé calçando exatamente o sapato que eu andava querendo para mim, antes de gastar quase todo o meu dinheiro com o uniforme dos filhos. Eu vejo um pé meio grande demais, meio feinho, mas, ainda assim, sinto um tanto de inveja. Ergo a cabeça e dou de cara com uma bicha sensacional, com um cabelo maravilhoso e calçando os sapatos que eu tanto queria. Além de tudo ele é o primeiro da fila do Buffet e, vagarosamente, com delicados movimentos, vai se servindo. A minha filha me pede para ir a uma festinha no final de semana, eu digo não, e por alguns momentos ela fica meio parecida com a Richtofen me encarando. O filho do meio começa a me mostrar que aprendeu a arrotar voluntariamente. Veja bem: não matemática, não português, mas a arrotar bem alto, na fila do restaurante, bem pertinho dos meus colegas de trabalho. Nisso o meu caçula choraminga que está com fome.Transfiro toda a minha raiva existencial para a bichinha, mas tento lutar contra. A fila anda e eu pergunto bem alto se o meu filho quer uma “bichinha”, quando queria dizer um peixinho. A bichinha se volta assustada, eu tenho certeza que eu vou apanhar e muito – ela é enorme - mas ela deve meditar há mais tempo que eu, porque, refinadamente, me despreza. Perdemos o ônibus escolar e eu acabo chegando atrasada no trabalho. Cinco e meia da tarde, vou tentar cumprir pelo menos um item da minha lista – para quem está começando a ser organizado, já está bom – vou levar o meu sapato preferido para pintar. Mas o dia foi muito difícil. Eu descobri que a vida das mulheres organizadas também não é fácil. Eu estou com muita vontade de chorar, mas como eu sou agora uma pessoa organizada, vou chorar no local adequado, quando chegar em casa, após o jantar, depois de tirar a maquiagem. Para ajudar evoco a imagem da minha mãe gritando “engole o choro”. É eficaz. O sapateiro me comunica que o sapato não é de couro e não pode ser pintado. Embora ele tenha sido delicado, ouvir isso não foi fácil para mim. O rapaz do penhor pouco antes já havia me comunicado que o anel de noivado que o meu ex-marido me dera era bijuteria e agora nem o meu sapato favorito era de couro! Foi a gota d’água para liberar o meu choro, tive que ser um pouco desorganizada e chorar na frente do sapateiro mesmo. Mas ao contrário do que eu previra foi uma beleza: o sapateiro ficou tão nervoso que prometeu estudar um jeito de pintar o meu sapato - eu acho que ele chegou a me prometer um sapato novo,não ouvi bem, porque eu soluçava muito alto - e gentilmente me acompanhou até a porta. Volto para casa bem devagarzinho, muito aliviada pelo choro. É outono e da janela do ônibus vejo que o sol se põe na Ilha. Pelo telefone celular, ouço que as crianças já estão em casa em segurança e que um deles quebrou o despertador. Tudo bem. As minhas gavetas continuam desarrumadas, certamente há louça suja na pia e eu resolvo aproveitar apenas mais um item da minha lista antes de jogá-la fora: ver o sol se por na ilha, no outono, ainda que seja da janela do ônibus.

sábado, 8 de agosto de 2009

Pais, filhos, finais de semana e feriados

As frases que você mais ouvirá, amiga separanda-com- filhos, serão: “ele é pai, tem direito, é bom para as crianças” ou, ainda, “você terá um tempo para você , é jovem, namore”.
O seu ex pode ser um canalha notório que, mesmo assim, você ouvirá isso; os seus filhos podem não querer visitar o pai e, adivinhe: você vai ouvir isso; você pode estar de coração totalmente partido, sem condição nenhuma de namorar, de se relacionar com alguém, e ouvirá isso de amigos e parentes.
E, então, se sentirá sozinha.
Neste ponto, quero dizer a você, querida amiga ou amigo, parente ou ente querido de uma separanda-com-filhos: Não dê conselhos, não julgue – por que a próxima ou próximo pode ser você: por praga minha, sobretudo.
Se você puder, dê um ombro, ouça, dê um sorriso, convide a sua amiga para tomar um sorvete – de preferência pague por ele – e se tiver algo a dizer, repita, jure, garanta e pode até citar o meu nome como fiadora: vai passar, vai passar.
Só isso.
Conselhos legais? Indique um bom advogado, amigo seu. Advertências de conduta ou emocionais? Deixe para o psicólogo ou psiquiatra. Dizer verdades, as suas verdades, ou impor os seus valores? Limite-se a contar as suas histórias pessoais, sem comparar-se. Tentar usar a sua amiga ou irmã de escada para tentar se sentir uma pessoa melhor? Vá você mesmo, melhor correndo, ao psicólogo ou ao psiquiatra.
Quanto a mim e a meu ex, as nossas mágoas, a nossa raiva mútua, atingiu as crianças muitas vezes, mais vezes do que eu gosto de lembrar e perceber.
Em muitas ocasiões os meus filhos voltaram sujinhos, sem banho, porém suados e bem. Em outras, vieram quietos, com sombras no olhar, ou raivosos, cansados de carregar as misérias dos adultos.Muitos recados, endossados pela mágoa e pelo despeito, recebi, pelos meus filhos, vindos do meu ex e da ex-sogra; a nenhum desses respondi - com muita ajuda da terapia. E eu, embora procurasse não perguntar da vida de meu ex pelas crianças, o meu rosto, a minha voz, a minha energia, eram todos medo e dúvida.
Os nossos reencontros, meus com os meus filhos, em muitas ocasiões, demoravam dias, semanas, porque demoravam dias e semanas para que meus filhos acomodassem tristezas, frustrações e aprendessem a viver sob a guarda de valores tão diferentes.
Como não é raro acontecer, com o passar do tempo - e a diminuição da resistência materna - as vistas, os pernoites tornaram-se menos numerosos: os papais redescobrem a noite e os prazeres da vida.
Também os primeiros natais sem eles foram tristes, vazios, como vazios foram os finais de semanas - por alguns anos! - sem crianças, sem bagunça, sem barulho. Quem eu era, quem eu sou, quando não sou mãe? Qual porção, dos meus sonhos, dos meus objetivos, dos meus projetos, não corresponde à felicidade exclusiva dos meus filhos? O que eu gosto de fazer, onde ir, o que falar, com quem falar, sem ser mãe? O que os meus filhos querem, a despeito da minha vontade e a do pai? Acho que essas são as grandes perguntas, "AS PERGUNTAS", as que podem conduzir a uma maior felicidade para todos e trazer mais paz para o coração dos filhos.
E, veja, as minhas crianças não morreram de fome, não apanharam nenhuma doença grave e esquisita por falta de higiene, não foram esquecidas em um parquinho, totalmente desagasalhadas, tendo que se alimentar de meleca de nariz para sobreviver, e, tampouco, foram vendidas pelo próprio pai para um argentino, no shopping, como eu psicoticamente imaginava.
Portanto, houve dor, sim, até eu descobrir, de verdade, que a convivência com o pai poderia “ser boa para as crianças” - quando essa fosse a vontade deles, a dos filhos - ou, ainda, que eu teria, sim, um tempo para mim, que eu era mesmo jovem, e que, um dia, voltaria a namorar...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Prólogo

Prepare-se para ganhar o mundo e para ter tudo o que você sempre quis, a ter muito conforto, a ser admirada pelos seus amigos de hoje e de ontem – e principalmente os de ontem e - porque não? – para ser invejada mesmo por todos aqueles que a machucaram – prepare-se para ser linda e saudável aos quarenta anos. Prepare-se para saber muito sobre muitas coisas e tudo sobre algo que ninguém mais sabe. Prepare-se para ter os melhores endereços entre cabeleireiros, maquiadores, manicuras, advogados, diaristas e médicos da cidade e cercanias. Prepare-se para ter aquela cor saudável de um discreto bronzeado. Prepare-se para jamais precisar de um remédio para dormir, por que você jamais perderá o sono, exceto para ter uma linda noite de amor com um homem bonito e gentil.Prepare-se para ter o cartão de crédito ilimitado, pago pontualmente todos os meses. Isso! Prepare-se para ser bem resolvida com a sua mãe, amá-la muito, mas não envelhecer como ela, não ter amado e não ter sido amada tão pouco como ela, não engordar como ela, não ter tão pouco dinheiro como ela. Prepare-se para ter uma relação perfeita com os seus irmãos, que são todos tão bem sucedidos quanto você. Prepare-se para entender muito de informática, moda, beleza e saúde. Prepare-se para ter um carro maravilhoso que será trocado por um ainda melhor no ano seguinte, prepare-se para viajar, para ter um apartamento decorado por um arquiteto de verdade, prepare-se para ser paquerada, desejada e para ser uma maravilha na cama. Prepare-se para falar uns dois ou três idiomas e conhecer muitos países e saber tudo sobre todos os outros cantos do Globo.Prepare-se, porque você será sempre pontual, a sua casa vai ser muita limpa, perfeitamente organizada e a sua dispensa jamais estará vazia – seja por falta de dinheiro ou tempo- e, ainda assim, prepare-se, pois você, jamais – e eu digo jamais – será chamada de chata, neurótica ou nervosa, ou, tão menos, ser acusada de sofrer de TPM, por seus funcionários, filhos, colaboradores, marido e demais entes queridos.Você deve estar preparada, sim, para não chorar nos lugares inadequados - ah! com esta vida quem deve ou precisa chorar? – para estar sempre devidamente maquiada, cheirosa, unhas feitas, malhada e para ter bons ouvidos para todos aqueles que os precisarem. Prepare-se para nunca ter vontade de comer chocolate, e até mesmo sentir nojo de todas as comidas não-saudáveis, mas, se for o caso, prepare-se para ter um metabolismo incrivelmente veloz, porque as calorias que você ingere simplesmente se queimarão sozinhas. Prepare-se para, ocasionalmente, aparecer positivamente na coluna social e para ir sempre ao cinema e ao teatro, porque sempre lhe sobrará dinheiro para as atividades culturais. Prepare-se para ser a melhor mãe do mundo, das crianças mais felizes e bem resolvidas do mundo e, sim, que mesmo na adolescência a amam e a respeitam de todo o coração.Prepare-se para, se você tiver que se divorciar de seu marido, ainda muito jovem e linda, ter uma relação de amizade e parceria com o seu ex, para, juntos, criarem estas crianças lindas e maravilhosas. Prepare-se para ter sempre amigos os quais, como você, são leais e divertidos. Prepare-se para ser espiritualizada e conectada com todo o bem, por uma linha direta, que é um lindo cordão de prata que sai direto do seu próprio umbigo - que se situa na parte inferior da sua barriga chapada, incrivelmente lisa - em direção ao invisível e ao infinito. Esteja preparada para ter, também, um cachorro e um jardim perfeitos e, sobretudo, para escrever um livro de sucesso. Prepare-se porque todas as eventuais dores da infância e da adolescência serão regiamente compensadas por toda a vida maravilhosa acima descrita. Prepare-se para tudo isso. Mas, se nada disso for verdade, se quase nada ou nada disso se realizar em sua vida, prepare-se para, um dia, acordar aos trinta e tantos anos, e, simplesmente, não querer mais existir. Mas atenção: aquela é a mulher ideal, você é a mulher real.
Eu sou a mulher real.A mulher real ainda enfrenta a ideal todos os dias. A mulher ideal, traiçoeira que é, vive, portanto, nos lugares mais traiçoeiros: nos meus sonhos, nas minhas esperanças e nos valores que aprendi. Nesses momentos, nada que não atenda às expectativas da ideal parece merecer sobreviver. Veja que a ideal às vezes surge nos olhos de quem mais amo, na voz dos meus chefes, dos colegas de trabalho, umas tantas vezes no espelho e atenção: eu já a ví até num dedinho de prosa com o síndico do meu prédio.Se eu ainda não a posso ver claramente, muitas vezes eu posso pressentí-la, sinto que a mulher ideal está alí,espreitando-me, tentando se impor para mim. Mas a mulher real agora é mais atenta e forte, a mulher real emerge.

O começo

Estamos eu e meu padrinho de casamento aguardando o grande momento. Eu estou muito nervosa, inclusive com a minha aparência, será que estou bem? Claro que não, mas pareço bem? Provavelmente não. É verdade que estou mais magra, tentei este tempo todo, melhorar a aparência – aparelho e lentes de contato. Eu estou toda de branco porque - pelo sim ou pelo não - esta cor já me deu sorte. A minha casa já está pronta, toda reformada. Eu sinto que os meus amigos e minha família torcem por mim. Eu noto as minhas unhas e ai! Esqueci de fazer as minhas unhas. Será que vai dar tudo certo? Creio que sim. Vida inteiramente nova para mim. Estou com medo, como toda moça em minha situação deve estar. Olho para baixo, acabou o assunto entre o meu padrinho de casamento e mim. Meus joelhos tremem, meu corpo todo treme. E ele já chegou, sempre pontual, e também parece nervoso.Preocupo-me, estou bem? Já me viu, mas não sorri para mim e nem eu para ele, mas que bom que veio, penso, muito ansiosa. Estamos todos solenes e o Juiz anuncia o início da cerimônia. Estamos todos prontos.Final Feliz.

Prontos? Final? Feliz? A sala era de audiências. O Juiz , era o da Vara de Família.O meu ex-padrinho de casamento (será que padrinho também é ex?), foi o meu advogado. Eu estava mais magra porque estava sofrendo muito e “ele” era quem, então, se tornaria o meu ex-marido, sob as bênçãos, agora, dos homens.

Acabou a audiência, filhos devidamente acomodados sob a guarda da nave mãe, dívidas para mim, obrigação de pequena pensão para “ele”, mais visitas de quinze em quinze dias, e, é claro, “móveis e guarnições da casa para a cônjuge varoa”. O olhar magoado de sempre, a cônjuge voltará a usar o nome de solteira – o que, na verdade, nunca mais voltará a ser: a varoa agora é uma divorciada, com filhos e muitas dívidas.

Depois da guerra, eu pensei, vem, só pode vir a reconstrução, certo? Errado para mim. Havia – e ainda temo que há - tanto a destruir em minha vida que aquele era um insipiente começo.

Não volto de carro para casa ou para encontrar com as amigas ou, talvez, com um novo amor.O meu eu de agora, tem quase trinta e tantos anos cansados, apanha o próximo ônibus e volta para o trabalho para não perder a produtividade. Meu chefe me olha entre aliviado e esperançoso de não ver mais os olhos vermelhos de chorar ou ter de ouvir os meus pedidos de trabalho extra por que eu estou, definitivamente, sem dinheiro. À noite volto para casa, para os meus filhos, cansada, triste, com esperança ou sem, não me lembro. Só me recordo de ter acordado no outro dia e ter percebido que nada tinha mudado muito, talvez algumas obrigações a mais, e um medo que começava a crescer no meu peito, pensando na primeira vez em que os meus filhos pequenos iriam dormir longe de mim...